Sobre negação e potência

Artista: Verena Smit

Alguns pesquisadores da área de estudos culturais dizem que nossa identidade se forma a partir daquilo que nos difere do outro – e não daquilo que nos é comum. Ou seja, de forma muito simples, sou brasileira porque não sou chilena/japonesa/holandesa, e não somente porque partilho valores culturais com você leitor(a), que possivelmente também é brasileiro (a).

Pode ser confuso, porque essa abordagem parte da inversão de um senso comum. Vale lembrar que essa é uma das leituras possíveis sobre o complexo conceito de identidade. Nessa perspectiva, a identidade é pautada pela diferença, pela negação daquilo que há no outro e não há em mim.

Num salto, se colocarmos essa noção a serviço da compreensão do fenômeno da polarização política gritante que vivenciamos nas eleições deste ano, vale dizer: aquilo que nos caracteriza como alguém que se identifica com o campo das esquerdas é justamente aquilo que faz com que não nos identificamos com o campo das direitas. Valores, referências culturais, e todo um caldo de subjetividades se manifesta nessa disputa ideológica. É nessa mistura que surgiram os discursos como “Ele não”, por exemplo. (Claro, somam-se aí outros fatores como o antipetismo, antilulismo, antipolítica, etc)

A afirmação de um candidato (Haddad) pela negação do outro candidato (Bolsonaro), acabou por gerar uma outra onda de negativas que, ao meu ver, contribuiu para a ascensão do agora presidente eleito. Tal onda se formou e ganhou força a partir da negação dos campos progressistas de que Bolsonaro era um candidato viável, como alguém com chances reais de vencer o pleito. Enquanto uma parcela do eleitorado – massivamente situada do centro à esquerda – vivia entre piadas, descrença e uma genuína negação da realidade (realidade essa que cada vez tomava forma e se concretizava nua e crua diante de quem estivesse disposto a ver), Bolsonaro ganhava terreno, modulava o discurso e investia em novas praças (vide a aproximação com um território sabidamente petista como o Nordeste, durante o segundo turno, mesmo que remotamente).

Negar a existência de algo ou alguém – inventando apelidos para nomear de outra forma, por exemplo – não faz com que esse algo ou alguém desapareça. Pode haver um certo conforto no distanciamento da realidade, é verdade, mas se tem algo que a corrida presidencial mostrou, é que o desespero que sucede a falsa sensação de conforto é avassalador. E a inércia diante da vivência da negação faz com que os movimentos e iniciativas de resistência concreta à candidatura do capitão reformado tenham chegado tarde demais.

Ao passo que um lado se ocupava com esta lógica (mas não só a ela, claro), o outro lado se entretia com outro tipo de negação (ou negações). Aqueles eleitores mais situados à direita se envolveram numa espiral negatória. De direitos a fatos, de preceitos democráticos a existências, os territórios contestados foram dos mais variados. Nesse caso, garantias fundamentais e até a própria noção de verdade foi posta à prova, num jogo narrativo intrincado e complexo difícil de ser desconstruído, ainda que uma linguagem simples e acessível tenha sido usada como suporte. Tal narrativa foi construída para promover uma disseminação em massa de versões que buscam desinformar e ampliar a base por meio da dispersão de discursos que se apoiam em valores morais, ideológicos (amparados pelo senso comum e no sentimento de medo), que nada tinham de propositivo do ponto de vista político. Ao contrário, tiveram como função ofuscar discussões concretas e alimentar polarizações – e negações.

Estudos sobre linguagem e neurolinguística já provaram que nossa dieta de informações, sobretudo online, é guiada pela busca de versões, dados e demais subsídios que corroborem nossa visão de mundo e opiniões. É desse princípio que advém a ideia de bolha ideológica, aprendida com maestria pelos algoritmos que regem nossa vida virtual. Em suma, nossos filtros (sociais, virtuais, etc) nos conduzem para a reafirmação daquilo que acreditamos, mesmo que seja mentira.

Agora imagine um cenário de potencialização dessas negações – e aqui me detive a duas miradas que foram sintomáticas na corrida eleitoral, mas há uma série de outras possíveis de serem identificadas – a um contexto de bombardeamento constante de narrativas de crise, golpe e demais disputas. É aqui que estamos.

Negamos tanto que em determinados momentos passamos a negar nossa própria identidade. Até mesmo como forma de sobrevivência, pois na impossibilidade de se existir tal qual se é, se abre o caminho para cogitar novas existências e, portanto, outras identidades.

Negamos tanto que chegamos um não muito básico e original: o não saber. Não sabemos o que nos aguarda, não sabemos muito bem o que fazer ou como reagir diante da posição que o cenário caótico teima em nos colocar. Diante desse redemoinho de negações, é preciso tomar cuidado para não alimentar mais uma: a negação da ação. Lugar perigoso que nos paralisa, que nos convida ao não-movimento, à pura inação.

Penso que a retomada para o lugar de potência passa pelo reconhecimento desse estado generalizado de negação e o que ele provoca (a inação). É a partir desse diagnóstico que seremos capazes de construir caminhos possíveis de resistência e ação. É preciso urgência em redirecionar esforços e energias para um movimento que crie um espaço fértil para afirmações e reafirmações. De identidades, potências, estratégias, saberes, desejos. Daí virá o agir.  

Deixe uma resposta