Há pelo menos seis anos despertei para a importância da manutenção do bem-estar em termos de saúde mental do trabalhador. À época, eu vivia uma rotina insana de uma pessoa recém-formada que queria mostrar trabalho e ser reconhecida. Para isso, me submetia a jornadas intermináveis com um salário que nem de longe faria justiça às horas dedicadas e resultados apresentados. O tal reconhecimento nunca veio, mas esse período me trouxe de brinde uma crise de gastrite que me levou ao hospital e me deixou fora de combate por alguns dias.
Dali em diante passei a prestar mais atenção aos meus limites e também ao comportamento dos colegas. A tal rotina insana cobrava a conta de uma forma muito perversa, acumulando sintomas. Há seis anos eu bebia muito mais (não ao ponto de me tornar alcoólatra, mas definitivamente não era uma maneira saudável de lidar com a bebida); me alimentava de comida congelada e fast food, invariavelmente em frente ao computador (era raro dedicar um tempo para cozinhar ou me alimentar adequadamente); episódios de insônia eram constantes (e, com eles, todo um apanhado de paranoias criavam raízes); eu vivia irritada, cansada, e muitas vezes negligenciava relações que são muito caras para mim (e disso ainda guardo um resquício).
Meus colegas, cada um a seu jeito, também demonstravam sintomas semelhantes. Episódios de ansiedade, perda de cabelo, sono e apetite desregulados, comportamentos abusivos, e por aí vai. Todos encontravam sua maneira de suportar o dia, a pressão, o salário baixo e todo o caldo de questões pessoais, extra-trabalho, mas ninguém cedia. Ninguém (nem eu), em nenhum momento, disse algo parecido com “preciso de ajuda”, o máximo que conseguíamos expressar era um “tá puxado”.
Logo depois troquei de trabalho e os relatos persistiam, cada vez com mais força. Até que houve um primeiro afastamento por depressão na equipe. Falar “foi um baque”, seria mentira. Todo mundo já esperava por algo do gênero, mas ninguém sabia quem seria o primeiro. Essas situações logo que iniciei minha vida profissional me fizeram refletir sobre a questão da preservação da saúde mental do trabalhador.
>> Alguns dados para pensarmos
Um levantamento de 2017 do INSS apresentado pela Folha e pelo Estadão, mostra que transtornos como depressão, ansiedade e burnout estão entre as cinco maiores causas de afastamento laboral no Brasil. A reportagem da Folha mostra como os empregadores subnotificam o adoecimento de funcionários: no caso de episódios depressivos e ansiedade, a subnotificação chegou a 76% e 62% dos casos. Ou seja, as empresas afastam seus funcionários por motivos de doença, mas quando se trata de doença relacionada à saúde mental, a empresa não notifica o motivo do afastamento via Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) de maneira apropriada.
Dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) apresentados pela Folha no ano passado, mostram que houve um aumento de 54% no número de consultas psiquiátricas cobertas por planos de saúde entre 2012 e 2017: 4,5 milhões de pessoas procuraram atendimento em 2017. Há vários outros números que poderiam ser trazidos, mas o foco deste texto não é a numeralha.
À parte dos dados oficiais, que nos ajudam a ter uma dimensão da insanidade com a qual tratamos as relações de trabalho pós-modernas, um exercício simples também pode ajudar na tarefa de compreensão. Pare por um minuto e pense em quantas vezes você ouviu um colega (ou você mesmo) reclamar que está dormindo mal; que se sente sobrecarregado/cansado: que não lembra a última vez que assistiu a um filme ou leu um livro por prazer; que não aguenta mais a pressão da chefia; que não pede demissão porque os boletos continuam chegando. Certamente você já ouviu alguma dessas falas ou outras muito similares.
Se você é mulher, acrescente-se à lista casos de assédio, machismo, o medo de engravidar e perder o emprego, a luta diária contra o descrédito com a qualidade do trabalho apresentado pelo simples fato de ser mulher. Isso tudo adoece — e muito. Se você é negro, acrescente-se aí o racismo estrutural da sociedade que se reflete de maneira ainda mais perversa nas relações de trabalho, diariamente, por conta de como a herança histórica se manifesta também em ambientes profissionais.
Em casos nos quais a opressão se manifesta, a resignação é uma resposta comum. A proposta deste texto é provocar uma reflexão, por meio do estímulo à resiliência e ao autocuidado.
A maior parte dos empregadores tenta se eximir da responsabilidade em manter um ambiente de trabalho saudável e, em casos de adoecimento, proporcionar acolhimento aos funcionários. Os números apresentados na reportagem dão conta disso. E aqui também há uma (óbvia) mudança de paradigma a ser difundida: trabalhadores saudáveis produzem mais e custam menos. Se a lógica de trabalho é capitalista, eis aí um argumento que fala a mesma língua do empregador.
Quem está doente, ou passando por um sofrimento psíquico, não “rende”, não consegue se concentrar, não apresenta resultados, gera preocupação em colegas, não tem condições de se cuidar. Aqui, entram diferentes estratégias que podem ser adotadas pelos empregadores, que vão desde terapias coletivas a vouchers que podem ser usados como o funcionário desejar, ou mesmo disponibilizar tempos livres para que cada um utilize da maneira que fizer sentido para si. “Inovação”, para mim, passa por aqui — e não por equipamentos tecnológicos sofisticados ou ferramentas de gestão ou qualquer coisa que valha.
Vale dizer que há um gap de percepção entre quem ocupa os cargos mais altos da hierarquia e quem está mais abaixo da cadeia. Cuidar de si custa caro, na maior parte dos casos. Desse modo, quem está acima tem condições de viajar no final de semana, pagar um terapeuta, uma massagem, ou mesmo pagar um pacote de internet que lhe permita assistir Netflix 24h por dia, sem travar. Quem está abaixo tem outras preocupações, e lazer e autocuidado nunca são tratados como prioridade pois, dentro do orçamento restrito, estes são itens supérfluos.
E aqui entra uma palavra que ficou gasta ultimamente, mas que é muito importante: empatia. Só a partir do momento em que gestores, líderes e chefia em geral forem capazes de se colocar no lugar do outro (nesse caso, dos funcionários que estão abaixo na linha de comando), é que haverá um esforço real de ajuda e acolhimento daqueles que estão em sofrimento.
>> O buraco do terceiro setor
Trabalho no terceiro setor há oito anos, sendo que a maior parte desse tempo estive envolvida com organizações ligadas à defesa dos direitos humanos. Nesse campo, tudo isso que foi falado até o momento adquire um significado diferente. Um primeiro ponto é que não há o objetivo de gerar lucro, mas as pressões por produtividade são perfeitamente comparáveis àquelas dos ambientes empresariais “clássicos”. Jornadas exaustivas e cobranças por prazos são cotidianas e tratadas com uma normalidade inaceitável.
Além disso, há uma percepção de que o “propósito” move o trabalho e, diante dele, é necessário fazer concessões e sacrifícios em prol de uma “causa nobre”. O fim social do trabalho nesse setor é invariavelmente nítido e envolve pessoas ou animais em situação de vulnerabilidade. Como descansar diante de tudo que há para ser feito?
A tal “causa” também precariza as relações de trabalho: a formalização é rara e os salários são abaixo dos valores praticados no mercado. Isso tudo gera uma tremenda bola de neve: a causa me move, o trabalho é interminável, há cobrança de todos os lados, isso gera um esgotamento físico e mental, a precarização não dá condições do trabalhador se cuidar de maneira adequada (e as organizações também não oferecem alternativas), quem adoece rende menos e passa a ser um peso, o resultado disso tudo é sempre o mesmo, o “desligamento”.
A situação do terceiro setor vale um texto à parte, e por isso vamos direto às soluções possíveis.
>> O que pode ser feito
Já citei muito rapidamente algumas estratégias que podem ser adotadas por empresas e organizações, mas vamos lá. Penso que as possibilidades de “fazer algo” são inúmeras, e partem do mais simples para o mais complexo.
> Oferecer frutas e comidas saudáveis para os funcionários: é comum que a ansiedade cotidiana desperte episódios de compulsão, e que isso seja direcionado para doces, guloseimas e besteiras em geral. Disponibilizar alimentos saudáveis contribui para a formação de hábitos e combate esse tipo de comportamento;
> Criar canais de escuta e denúncia: muitas vezes, os trabalhadores se sentem acuados em denunciar casos de assédio ou intimidação, ou mesmo de admitir que a carga de trabalho está exaustiva, pelo simples fato de não existir um canal de diálogo. Num mundo ideal, esse canal deve ser construído com o auxílio dos funcionários, para que as demandas e necessidades sejam atendidas, na medida do possível;
> Realizar treinamentos periódicos: uma outra possibilidade é apresentar constantemente técnicas e possibilidades de autocuidado para os funcionários. Muita gente não sabe nem por onde começar a se cuidar, e esse tipo de espaço pode ser um meio de estimular o autocuidado. Entram aqui oficinas de meditação, alimentação saudável, práticas manuais, qualquer coisa que tire o foco do trabalho e recoloque sobre o trabalhador;
> Subsidiar tratamentos e acompanhamento terapêutico: planos de saúde em geral têm um limite de restituição de consultas/atendimentos terapêuticos. Uma forma de contornar isso é oferecer um subsídio financeiro para que o funcionário tenha acesso a um acompanhamento adequado. O mesmo vale para medicamentos de uso controlado, que podem ter custo elevado;
> Aulas coletivas de atividade física: não é todo mundo que gosta, mas já é mais do que sabido dos efeitos da atividade física para o bem-estar do corpo e da mente. Aulas de pilates, alongamento, ioga, ou qualquer outra modalidade que trabalhe o controle do corpo e da respiração pode ter um papel decisivo para evitar crises de ansiedade, por exemplo;
> Confraternizações fora do escritório: a descontração do ambiente promove um ambiente de trocas no qual as pessoas passam a se conhecer. Isso estimula a tal da empatia e a partir dessas interações, fica mais fácil estar atento ao outro e criar canais de confiança para pedir (e receber) ajuda;
> Gestão de conflitos: pequenos desentendimentos podem evoluir para grandes crises se não forem mediados com a devida atenção. A presença de um profissional externo periodicamente no escritório pode ajudar a diminuir tensões e buscar resolução para conflitos, diminuindo o estresse e criando novos canais de diálogo.
Enfim, as sugestões não se esgotam por aqui, e cada empresa ou organização pode criar rotinas e desenvolver estratégias que se adequam melhor ao perfil dos funcionários. Novamente, o ideal é que os funcionários sejam consultados para que se tenha um noção das principais necessidades e desejos e, a partir daí, encontrar um meio-termo que seja bom para ambos os lados.
Agora, se a sua empresa ou organização não faz absolutamente nada para cuidar dos funcionários, há estratégias individuais que também podem ser utilizadas. Eis algumas ideias que envolvem investimento financeiro e também iniciativas gratuitas:
> Procure ajuda profissional: se não há subsídio para acompanhamento terapêutico, organize-se financeiramente e procure o tipo de terapia que faz mais sentido para você. Há várias iniciativas gratuitas que também podem dar um alívio, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), ou mesmo as clínicas gratuitas de Psicologia, que em geral são vinculadas às faculdades de Psicologia da sua cidade;
> Faça pequenos agrados para si mesmo: tire um dia para cozinhar algo gostoso, permita-se acordar mais tarde no final de semana, vá ao cinema, a um show, a uma peça, encontre algo simples que te deixe feliz e vá lá e faça. Toda cidade também tem uma programação cultural gratuita que pode proporcionar um alívio para a cabeça e inspirar mudanças;
> Fique atento aos sinais: você se conhece. Já falamos de alguns sintomas (insônia, falta ou excesso de apetite, agressividade, etc) que podem servir de sinal de alerta. Fique atento a como o seu corpo reage a situações de estresse e, ao menor sinal de perigo, reaja;
> Converse com quem te quer bem: mostrar-se vulnerável não é feio nem vergonhoso. Se você está sofrendo, conte com sua rede de proteção: amigos, família, pessoas queridas. Converse, coloque para fora o que te gera angústia e peça ajuda para pensar em soluções;
> Descanse: encontre aquilo que faz a sua cabeça descansar e torne isso uma rotina. Se dormir 10h por dia é essencial para o seu bem-estar, ajuste a sua rotina para encaixar uma boa noite de sono. Se o seu descanso é nas páginas de um livro ou em um banho demorado ou ouvir música, faça isso também.
Você já passou por alguma situação dessa e quer compartilhar a sua história? Escreve pra mim. Conhece alguma outra estratégia interessante de autocuidado que não está listada acima? Escreve para mim também. Quero muito saber o que você tem a dizer sobre a saúde mental em ambiente de trabalho.
Ótima matéria, pois me encontro nessa situação neste exato momento. Fui dispensada da empresa sem a menor consideração e não tenho condições de avaliar meu caso/estado emocional.