Por que o firehosing não se aplica à “nova política” brasileira

Durante as eleições de 2018, um termo em inglês passou a fazer parte do vocabulário de uma parcela do eleitorado: firehosing. A palavra resume uma prática muito utilizada pelo presidente Donald Trump durante as eleições e, mais ainda, no exercício do mandato. Um vídeo do Vox explica direitinho do que se trata a técnica, com base em um relatório que aborda o seu uso na propaganda russa. Traduzida para o português, firehosing é algo como “mangueira de incêndio”, mas por conta do sufixo ing, pode ser lido também como “extinção de fogo” ou “ato de extinguir o fogo”, como queira.

Em resumo, os adeptos do firehosing utilizam a mentira como forma de propaganda, ao disseminar uma quantidade absurda de conteúdos falsos. A tática se utiliza de quatro princípios básicos, descritos no vídeo da Vox por um dos pesquisadores que conduziu o estudo:

  1. Grande volume de disseminação em diferentes canais
  2. Rapidez, continuidade e repetição são chave no processo
  3. Não há comprometimento com a realidade objetiva
  4. Não há comprometimento com a consistência da informação

O objetivo por trás disso é retirar a legitimidade dos fatos e negar a realidade ao ponto de que a verdade vira uma “opinião”. Diante disso, espera-se que o espectador/leitor/eleitor tome uma posição alinhada àquele personagem cuja “verdade” é coerente com a sua própria. Em outros termos, aos nos depararmos com uma avalanche de informação, a tendência é que nos aproximemos daquela que ratifica nosso ponto de vista — sem necessariamente ter um juízo sobre a veracidade do que está em pauta.

Em um primeiro olhar, é possível encontrar similaridades entre o que foi descrito até aqui e aquilo que é colocado em prática diariamente pelo presidente Jair Bolsonaro e seu círculo próximo, que inclui seus filhos, assessores e ministros. Um número sem precedentes de informações falsas, imprecisas ou simplesmente fantasiosas é colocado no ar diariamente em canais oficiais. Nesse contexto, agências de checagem entram em cena para verificar o maior número possível de informações, mas no embate de forças, acabam acumulando um trabalho hercúleo por conta do volume de informações vs. tempo hábil e mão-de-obra disponível para a checagem.

Estamos imersos em um cenário aparentemente desolador, onde a verdade virou valor de disputa com viés ideológico, e não mais um conceito absoluto. A verdade passou a ser relativizada de acordo com crenças, dados são distorcidos para reforçar versões, isso tudo gera uma onda de desinformação e um caos factual, que envolve a negação da realidade, da verdade e dos fatos, resultando numa perda significativa de referenciais. Nessa confusão toda, ficar à deriva e acabar acreditando em qualquer coisa que se vê pela frente é comum — e não necessariamente envolve má-fé, em alguns casos é puro desespero de fazer parte de conversas e discussões e falta de conhecimento sobre como checar o que é verdadeiro ou não.

Seja nos Estados Unidos de Trump ou no Brasil de Bolsonaro, essa desordem informacional está posta. O uso político do firehosing, no entanto, é bem diferente — e aqui reside meu ponto de vista.

Trump leva o firehosing às últimas consequências e sustenta a sua posição até o limite. Chegou ao ponto de declarar emergência nacional para ter acesso a recursos para construir o polêmico muro na fronteira EUA-México. O motivo para o muro? Uma série de informações falsas sobre migração que embasaram o discurso do presidente estadunidense e eram constantemente refutadas e contestadas. Trump não cedeu, e usou a máquina pública para sustentar a sua “verdade”.

No Brasil, por outro lado, até o momento o que se tem visto é uma postura diversa. A “nova política” de Bolsonaro não sustenta a sua posição e cede a pressões — seja de seus pares, da sociedade civil, de eleitores ou mesmo da imprensa, com quem cultiva uma relação conflituosa há tempos.  

Basta procurar no Google por “Bolsonaro desiste” ou “Bolsonaro recua” ou qualquer sinônimo, que é possível ver boa parte dos refugos do presidente desde que assumiu o Planalto. O firehosing tupiniquim do capitão está de acordo com aqueles quatro princípios listados no início deste texto, a grande diferença é o uso político desta técnica de propaganda. Bolsonaro não tem a mesma obstinação de Trump e vai-e-volta o tempo todo.

Para citar algumas polêmicas recentes:

Num exercício imaginativo, com base no que foi observado até então nos EUA e no Brasil. Se Trump estivesse à frente dessas iniciativas, certamente iniciaria uma campanha massiva de disseminação de informações falsas ou imprecisas para reforçar seu ponto e mostrar a “real” e “verdadeira” necessidade de mudança — e isso também aconteceu no Brasil, em algumas ocasiões. No caso de Bolsonaro, os anúncios, geralmente feitos via redes sociais (tanto do presidente como de membros do governo), acaba servindo de termômetro e, diante da reação a cada movimento, o governo decide como agir.

Apesar do volume de informações ser massivo e as propostas de mudança também, parte do eleitorado, imprensa e sociedade civil estão num estado permanente de vigilância. A cada anúncio, uma reação se apresenta, mesmo que nem sempre exista uma articulação central. Esse excesso de ruído de todos os atores envolvidos gera uma sensação tal de desnorteamento que, de um lado pode provocar o recuo do governo e, do outro, impacta na organização de prioridades reativas. Assim, anuncia-se tudo, reage-se a tudo, e recua-se em boa parte das vezes.

Isso é reflexo de uma série de fatores, que vão desde o “mau uso” da técnica do firehosing à total inabilidade política do atual governo de articulação. Se o firehosing fosse utilizado com maestria ou então se a articulação do governo fosse coesa e eficiente, certamente os danos à sociedade brasileira da “nova política” errática seriam bem mais graves. De certa forma, a manutenção do caos é que nos mantém em um estado de aparente segurança, onde a redução de danos é minimamente possível e, de certa forma, controlada.

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