Quando eu estava na faculdade, e mesmo no início da carreira, eu sempre lia as reportagens com uma curiosidade imensa para entender como o(a) repórter transformava uma ideia em uma reportagem. Quais os processos, quais as fontes consultados, os bancos de dados, quais as perguntas que precisavam de resposta. Por mais que a faculdade ofereça (em geral) uma boa introdução ao instrumental de técnicas de reportagem e entrevista, a verdade é que boa parte dessas questões só se desenvolvem a partir da prática cotidiana.
O objetivo desse texto é justamente oferecer a estudantes, focas e qualquer outra pessoa interessada, um passeio pelo percurso da última reportagem que publiquei, em parceria com o Sérgio Spagnuolo, sobre o crescimento de apreensões de submetralhadoras artesanais no Brasil. Diante de um cenário de descrença da imprensa, da negação de fatos e da disseminação de informações falsas, acredito que um dos mecanismos de defesa do jornalismo é a transparência e a aproximação do leitor. Esse texto é uma tentativa nessa direção.
Vamos lá.
O ponta pé dessa reportagem veio a partir de uma dica que um amigo-fonte me passou. Em uma conversa, ele relatou que estava acompanhando casos de apreensões de submetralhadoras artesanais. Disse também que havia um certo padrão na fabricação de algumas armas, e alertou para a dificuldade em encontrar dados. A partir dessa conversa, iniciei uma busca no Google para identificar notícias que tratassem de apreensões desse tipo de arma. Entre janeiro de 2017 e outubro de 2018 consegui levantar mais de 80 notícias relacionadas. Isso me fez ter a certeza de que havia uma história a ser investigada — mesmo que eu ainda não soubesse qual seria o lead e para onde a apuração me levaria. Isso foi em novembro de 2018.
O segundo passo foi fazer um pedido via Lei de Acesso à Informação aos 27 Estados. Caos. Nesse ponto houve uma série de dificuldades: primeiro eu precisei identificar, Estado a Estado, qual era o órgão responsável por catalogar e sistematizar dados sobre apreensões de armas. Depois, me dediquei a redigir o pedido da forma mais detalhada possível, identificando a secretaria responsável e o(a) secretário(a), para evitar negativas. Cada Estado possui uma plataforma própria para submissão desses pedidos LAI, como não há necessariamente um padrão, esse processo me tomou dois dias, entre decifrar as plataformas e conviver com erros de carregamento e páginas que estavam temporariamente fora do ar.
Em tese, pela Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, a famosa LAI, os órgãos competentes têm até 20 dias para responder ao pedido. Passados os 20 dias, menos de 10 Estados haviam respondido. Alguns responderam com erros ou negativas, o que me fez entrar com pedidos de recurso — isso amplia o prazo de resposta em mais dez dias. Resumo da história: dos 27 Estados, apenas 12 retornaram com alguma base de dados utilizável. Em março eu recebi a última negativa de um dos pedidos feitos em novembro. Os demais Estados nunca responderam.
Diante de planilhas, PDFs e até arquivos de Word que recebi como resposta, pedi ajuda para decifrar e qualificar aqueles dados. Foi nessa etapa que entraram na história os pesquisadores de Instituto Sou da Paz, especialmente a Natália Pollachi e o Bruno Langeani, e também o Sérgio Spagnuolo, fundador do Volt Data Lab e referência em jornalismo de dados no Brasil. O conhecimento dos especialistas foi essencial para reclassificar dados equivocados e sistematizar as informações de modo que pudéssemos analisá-las em bloco.
Nessa etapa, a participação do Sérgio foi fundamental. Com as técnicas de jornalismo de dados conseguimos olhar para a base, formular perguntas e chegar às respostas que nortearam o restante da apuração. A partir daí, com as informações que precisávamos, fomos adiante com a pauta. Os dados nos mostraram que Minas Gerais é o Estado com maior apreensão de submetralhadoras artesanais. O caminho natural foi conversar com um delegado mineiro para entender os motivos disso e quais ações a polícia de Minas realiza para reprimir a fabricação e venda dessas armas.
Para essa reportagem, além do delegado, também conversamos com a Natália Pollachi, do Sou da Paz, e com outras fontes que estudam o mercado de armas, que acabaram não entrando no texto final, mas que deram contribuições importantes. Também foram consultados relatórios, estudos e qualquer outro material que ajudasse no entendimento sobre o foco da reportagem: as subs artesanais.
A etapa seguinte se resumiu a organizar as informações levantadas, estruturar mentalmente o texto, sentar e escrever. Daí em diante, cada repórter tem seu ritual. O meu inclui um primeiro rascunho escrito à mão, com os pontos que não podem faltar. Para mim, o papel e a caneta dão um ritmo ao pensamento mais fluído que em geral é engolido pelo teclado do computador; ao escrever à mão, paro e penso com calma enquanto tento achar a melhor forma de contar a história. Feita a primeira versão, leitura, releitura, ajuste e submissão aos editores. Seleção de fotos e escolha de outros elementos gráficos, como infográficos, também entram nessa etapa.
Uma vez publicada a reportagem, ainda resta uma última parte tão importante quanto qualquer outra: a divulgação. O jornalismo tem esse poder de apresentar realidades, histórias, fatos, dados, que nem sempre fazem parte do cotidiano das pessoas. Fazer com que o resultado do seu trabalho chegue ao maior número de pessoas possível é parte fundamental do processo.
O percurso da pauta à publicação foi esse. Falando assim, parece que foi tranquilo. Na verdade, foram quase seis meses entre o primeiro pedido LAI e a publicação. As dificuldades? Algumas. Cito a principal: a demora e o caos dos dados enviados por meio das respostas dos pedidos LAI. Não há uma padronização dos dados, há erros grotescos em alguns casos e a falta de bases em Estados-chaves também acabaram subestimando os números que, se fossem completos, certamente tornariam a realidade ainda mais impactante do que aquela que foi publicada.
Paciência foi um elemento importante para concluir essa reportagem. E receber ajuda, também. Se tem uma coisa que aprendi nesses anos de carreira é que a colaboração é muito melhor do que seguir um caminho solo. Trocar ideias, procurar o melhor caminho, a melhor palavra, tudo isso só enriquece mais o produto jornalístico final, seja ele qual for: vídeo, texto, etc. E é com esse mesmo propósito que encerro esse texto. Ficou com alguma dúvida? Quer trocar alguma ideia? Bora conversar. 🙂
Muito bom luiza! Esse processo do jornalismo real, extraído da prática, é muito legal e importante, continue publicando e compartilhando 🙂
Luiza, teu relato é importantíssimo!! Leitura obrigatória para os meus acadêmicos de jornalismo da Estácio/SC
Oi, Luiza! Parabéns pelo texro!!! É realmente muito difícil encontrar jornalistas que exponham, de forma tão transparente e sincera, o processo todo de uma reportagem É tão significativo para nós estudantes. Fiquei com um pouco mais de curiosidade em relação ao contexto da publicação. Foram seis meses até o texto ser publicado. Já existia um acerto com o veículo desde o início? Vc vendeu a pauta assim que teve certeza da história? Ou apenas quando já estava tudo terminado? Quais as dificuldades de se fazer reportagens investigativas tão demoradas?